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2012-02-20

A ética, o utilitarismo e a proibição das touradas

Desde 1 de Janeiro de 2012 que as touradas na Catalunha estão proibidas.

Os defensores da tourada são vistos, provavelmente com alguma justiça, como conservadores dos quatro costados, sem nenhum tipo de flexibilidade para rever os valores e cortar com o passado. Como valor absoluto, não tenho grande simpatia pelo conservadorismo, e seria até desastroso, em diversos pontos da história, que este fosse o instrumento principal a usar. Estaríamos pior, sem dúvida.

Quanto à tourada, é um espectáculo violento, que não me desperta grande simpatia. A existência desse espectáculo no séc. XXI pode ser difícil de justificar, no entanto também é difícil justificar a sua proibição. Qual será o ethos subjacente nela? Uma espécie de auto-determinação do animal, que segundo alguns nunca deveria viver apenas para o propósito de nos proporcionar um espectáculo. E qual será o da não proibição? Uma reserva da liberdade humana, que neste caso se sobreporia à liberdade do animal. De lembrar que a decisão sobre essa liberdade começou a ser feita pelo ser humano na domesticação, há milhares de anos.

No estudo da ética usam-se exemplos de situações limite para tentar explorar questões mais profundas. Há um instrumento clássico em que se põe a alguém um cenário em que há pessoas amarradas em carris, que morrerão atropeladas por um pequeno vagão desgovernado. A única forma de parar esse vagão é empurrando alguém, normalmente um desconhecido, para a linha, parando assim o carrinho e salvando as pessoas.

Exploremos então as situações limite.

Um crente no utilitarismo, que pretendesse maximizar o bem estar do maior número de seres humanos, responderia sem pestanejar que empurraria a pessoa. Um estudo recente revelou que 10% dos seus participantes o faria. Posteriormente, com alguns testes, chegou-se à conclusão que, desses, muitos tinham traços de psicopatia...
A maioria das pessoas, porém, diria que nunca às suas mãos morreria uma pessoa, mesmo desconhecida, mesmo para salvar várias, portanto preferiria não intervir.

A situação complica-se quando a questão que se põe ao utilitarista é que a pessoa a empurrar é seu familiar. Analogamente, para a maioria, a decisão ganha complexidade quando alguma das 3 pessoas lhe é próxima. Aqui pode argumentar-se que quem seguir cegamente a sua ideologia, chegará a uma decisão ainda mais fria do que a dos 10% mencionados acima. Nestes casos, a porta para a escolha menos má, ou se quisermos “cinzenta”, é-nos aberta pela liberdade, um desejável valor humano universal.

Um último cenário: e no caso de estar preso aos carris um animal de que gostamos? Se aplicarmos à risca a crença de que os direitos e a igualdade dos animais devem ser um valor humano universal, o que acontece?

Quer isto dizer que não devemos respeitar os direitos dos animais? Claro que não. Mas há gradações, e podemos não os querer equacionar com a liberdade.



Links interessantes:
O utilitarismo na Wikipedia 
The Wicked Souls of Utilitarians na Big Think

2012-02-15

Da geração na encruzilhada

(Publicado no scribd em 20-11-2012)


Lia há dias as queixas de uma jovem em relação à falta de oportunidades para quem tem um curso superior. É um argumento perfeitamente compreensível, e é triste que tal aconteça. Tem a ver com o que foi indirectamente prometido à minha geração, e veiculado na ideia da licenciatura. Uma promessa que veio de quem acreditava piamente nisso simplesmente porque era o paradigma dominante.

Claro que havia uma nuance que faz toda a diferença: eram poucos os que acediam à educação superior. Felizmente assistiu-se à sua democratização, e isso tem como consequência que um curso superior é cada vez menos um patamar e mais uma ferramenta. Para tornar as coisas mais difíceis, é uma ferramenta que pode ou não ser útil dependendo da conjuntura, do estado da ciência e tecnologia, e até da flutuação dos interesses dos seus possuidores.

Não devemos todavia confundir os “licenciados à rasca”, detentores de licenciaturas, pós-graduações ou mestrados, com o resto da “juventude silenciosa”, que tem poucas qualificações, ainda menos perspectivas e sem grandes hipóteses de aceder a um bom salário. Ou às vezes a qualquer salário.

A curto prazo, para os licenciados à rasca, a resolução passa por alargar as hipóteses de procura. Toda a integração europeia que aconteceu, desde o Erasmus à harmonização de Bolonha às companhias aéreas low cost, não foram meras curiosidades que “eles” fizeram na Europa. O alargamento das hipóteses de procura decorre destas oportunidades. E de certa maneira é bom, porque um curso superior que não tenha hipóteses em Portugal pode tê-las no estrangeiro.

O problema da tal juventude silenciosa é mais profundo, e a sua resolução é mais complexa. Emigração? Sim, mas esses não o fazem pela porta grande. Em Portugal o mercado de trabalho é pouco ágil, os salários baixos... Parece-me ser um dos grandes problemas do país, gerador de um círculo vicioso de mediocridade, tanto na vida dos envolvidos, como nas respostas dadas ao seu problema.

Do ponto de vista teórico, parece-me do mais saudável que há, em democracia, que quem seja privilegiado deixe de querer perpetuar o seu estatuto de forma artificial, e pelo menos aceite lutar por ele de forma justa, em oposição a remover-se confortavelmente da realidade social e viver apenas do que foi adquirido. Isto pode aplicar-se às empresas e às pessoas.

No caso dos bem conhecidos monopólios empresariais, a falta de concorrência inquina a procura pela eficácia no negócio, o que em última análise se reflecte na população. Em austeridade é ainda mais gritante que o Estado na prática subvencione accionistas de empresas, por meio de negócios ruinosos e parcerias nebulosas.

Haveria também vantagens numa maior proximidade entre as empresas e a sociedade, na medida do seu sucesso e grandeza. O exemplo de uma grande empresa de distribuição “querer talhantes e não os ter porque o Estado não os forma” é crasso. Como é que uma empresa que deveria ser um exemplo de empreendedorismo em toda a linha não abre ou patrocina essas escolas de formação? Porque não criam fundos de apoio ao ensino? Porque não fazem mais pelas artes?

E as pessoas? Como é que o enunciado anteriormente, sobre a perpetuação artificial de estatutos, se aplica às pessoas? Um exemplo sensível: a renovação do mercado de trabalho. A sua flexibilização é algo que deve acontecer, porque a solução para a precariedade não é simplesmente converter os recibos verdes em contratos a tempo indeterminado; por muito que custe, a solução para esta desigualdade é que alguma precariedade se incorpore nos contratos normais de trabalho. É polémico, sim, mas às vezes é preciso romper com o passado.

Motins de Londres (2011) vistos de Portugal

(Publicado no scribd em 08-09-2012)


Portugal é um país historicamente conservador. No entanto, desde o 25 de Abril, a esquerda, com laivos mais ou menos radicais, sempre dominou na retórica social e política; as suas idéias sempre foram consideradas “mais correctas”, “mais nobres”... em suma: na minha análise sempre houve uma superioridade moral da esquerda, concedida até muitas vezes pelos próprios adversários políticos.

Este efeito levou a que muita direita, mais ou menos radical, estivesse, por assim dizer, no armário. Neste momento parece-me desnecessário que lá estejam, é positivo que haja multiplicidade de discursos, de idéias, mesmo das mais radicais. Também é preciso coragem para as submeter à opinião e ao contraditório. Isso é a minha concepção de democracia.

Por ocasião destes motins em Londres, que confesso me chocam bastante, muita opinião produzida cai na velha dicotomia das duas facções: os amotinados são uns coitadinhos, vítimas do sistema versus os amotinados são criados pelo estado assistencialista e pelo multiculturalismo.

Qualquer uma destas análises simplistas é extremamente reconfortante, e extremamente errada. A primeira facção tenta justificar os motins com o neoliberalismo e o capitalismo, e rejeita ou secundariza que se precise de repressão; a segunda facção quer repressão e diz que nenhum trabalho social preventivo há a fazer, porque “eles” são mesmo assim, são como animais que só estão felizes a roubar e a aterrorizar os cidadãos. “Eles” são normalmente apontados como imigrantes, o que até nem é exacto, neste caso.

Há muita gente a defender um discurso de ódio sem se dar conta, pensa apenas que está a ser “desalinhado” com a generalidade da opinião pública e a vingar-se da tal superioridade moral da esquerda. Pensa que tem mais razão por ir contra a corrente. É o discurso do taxista, mais ou menos refinado. Ao ler algumas reacções a esta tragédia chego à conclusão que muita gente aceita uma das teses defendidas pelo executante do massacre na Noruega, Anders Breivik: o multiculturalismo é o papão e raiz de todos os males. Só que simplesmente na altura não teve coragem de o assumir.

A minha análise parte das idéias rejeitadas pelas duas facções radicais: tem de haver uma acção dura da polícia, tentando não recorrer a tácticas terceiro-mundistas que transformem Londres em El Salvador. Tem de haver muito mais presença da autoridade, e muito mais dissuasora. Por outro lado, é óbvio que terá que ser reforçada a vigilância e o acompanhamento social a situações que, todos nós sabemos, resultam nesta marginalidade. Os cortes cegos de Cameron, tanto na polícia como no acompanhamento social nos bairros problemáticos, podem ter que ser revistos. Até pode ser a tal “Big Society”, mas é preciso que não seja só um conceito. É preciso que exista. Não nos podemos é dar ao luxo de fechar os olhos às várias perspectivas de análise deste tipo de criminalidade oportunista, sob pena de termos de aceitar viver neste tipo de insegurança. E depois o que fazemos? Distribuimos armas à população? Voltamos ao faroeste.

Tragédia Grega?

(Publicado no scribd em 29/09/2011)


Já há muito que a situação em que a Grécia está envolvida me faz confusão. Como é que um país com aqueles pergaminhos, com aquela grandeza clássica, está naquele estado?

Conhecer o legado dos clássicos gregos, mesmo que superficialmente como eu, é conhecer também o presente. É irónico que num momento em que a Grécia se desmorona, eu esteja a ouvir aulas de retórica da Univ. de Berkeley (no iTunes U), aulas essas que obviamente se socorrem de muitos conceitos, textos e exemplos gregos.

A cultura grega é o início da nossa cultura, especialmente se usarmos a palavra na sua acepção mais moderna. A desvantagem de "ninguém" conhecer o grego é não apenas tornar os clássicos mais distantes, mas também não conseguir sentir o pulso daquele país, e perceber como é que os Gregos vêem a sua própria situação.

Encontrei dois sites de jornais gregos, mainstream, que publicam em Inglês, o Athens News (http://www.athensnews.gr) e o ekathimerini (http://www.ekathimerini.com). Traduzi também um site em grego no Google Translate, o comunista e algo radical (http://www1.rizospastis.gr), que poderia ser uma versão grega do Avante não fosse o ligeiro pormenor de usar muito a palavra (lá estão os clássicos) plutocracia.

Eis o que retirei, sem nenhuma ordem especial:

  • Os direitos adquiridos são muito mencionados, especialmente os dos funcionários públicos. Tenta evitar-se a diabolização destes últimos, embora admitindo que muitos não tem grandes qualificações e que estão lá porque dantes saía-se da faculdade e ia-se para o Estado.
  • Há um projecto de lei do governo que permitiria um referendo em qualquer circunstância, dando como exemplos de uso uma moção de confiança ao Governo ou uma pergunta sobre a saída do Euro. Quem escreve o artigo de opinião diz "não precisamos de perguntas, precisamos de respostas"
  • Há uma sondagem de opinião num dos jornais mainstream em que a saída do Euro e regresso ao Dracma está a ganhar.
  • Foi passada uma lei que obriga ao pagamento de uma taxa/imposto sobre a propriedade; o vice primeiro ministro, que ajudou a passá-la, diz na TV que não sabe se tem dinheiro para a pagar e que talvez tenha que vender uma das 8 casas. À pergunta do jornalista "e se não puder mesmo pagar?" ele responde "não sei, o Ministro das Finanças que me mande prender"
  • Fala-se muito de outro haircut da dívida, depois dos 21% de Julho, e que pode chegar aos 50%.
  • Há um tal de Makis Psomiadis, executivo do futebol com um historial de 40 anos em acusações e condenações que vão do tráfico de ouro à fraude fiscal passando pela chantagem; está neste momento em tribunal por alegadamente ter um esquema de apostas ilegais em jogos de futebol que ele próprio influenciava/comprava. Entretanto saiu sob fiança de 600000 euros que supostamente não teria porque fiscalmente não se lhe conhece riqueza.
  • O governo introduz impostos e taxas em tudo o que pode, incluindo a já falada taxa sobre a propriedade e uma taxa sobre o gás natural, grande aposta energética há uns anos, o que fez com que muita gente tenha convertido os seus sistemas energéticos.
  • O Primeiro Ministro, socialista do PASOK, quer reformas, mas os ministros demonizam o memorando e sabotam-nas por uma questão de imagem política, não querendo arriscar danos para a sua futura carreira.
  • O partido da Nova Democracia, centro direita, que segundo me lembro muito ajudou na situação do endividamento do país, está à frente nas sondagens, dizendo que os gregos não aguentam mais impostos.
  • No tal jornal comunista, o discurso é muito parecido com o do nosso Avante. Uma frase: "As medidas do governo vão provocar a aniquilação das massas populares, para salvar os nossos credores, o capital acumulado da plutocracia, a Zona Euro e a competitividade". Interessante, a competitividade ser apresentada como algo mau.

Mais do que querer inferir paralelos, dolorosamente óbvios, com alguns aspectos da sociedade portuguesa, a minha principal conclusão é esta: reagem ao que "lhes está a acontecer" e não há um discurso claro do caminho que se quer que o país siga. Além disso há muito pouco de pensamento político e de filosofia.

Nem que seja para honrar o legado dos clássicos, esperava-se mais.