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2013-06-19

Interrogações sobre o caso Snowden, o "whistleblower" da NSA

Nos actuais estados democráticos ocidentais, para lidar com o terrorismo, alguns governos decidiram, por vezes de forma unilateral, que a população poderia ganhar em segurança se abdicasse de alguma privacidade e escrutínio às decisões governamentais. Essas movimentações internas foram, segundo as explicações oficiais, fulcrais para evitar ataques terroristas pós-11 de Setembro, e na sociedade tiveram várias ramificações, que de alguma forma vão deixando a sua marca no mundo, na arte, na cultura e, ao que parece, nos próprios orgãos oficiais, como mostram o caso Wikileaks e o recente caso de Edward Snowden, o chamado “whistleblower”. Curiosamente a maioria das traduções para português desta palavra têm uma conotação negativa, culpa da nossa longa passagem por uma ditadura autoritária: bufo, denunciante, delator. Num regime autoritário, a delação por parte de alguns é um alimento vital para a máquina repressiva; uma delação por parte de alguém ligado ao poder é quase impensável, não só pelo castigo adivinhado mas também pela arquitectura centralista deste tipo de regimes. Numa democracia, um regime que incorpora “válvulas de escape” para se defender de concentrações excessivas de poder, o problema é mais complexo. Será que podemos considerar que estas delações representam um caso lícito, ainda que limite, do funcionamento dessas válvulas, ou, pelo contrário, serão eles um sinal de falta de lealdade democrática, alimentada por uma ditadura da transparência, que pode minar as democracias liberais? 

O advento da Internet e a sua democratização da difusão de informação deram novo fôlego a alguns ideais libertários. Há um conjunto de pessoas, vistos por alguns como visionários, que acreditam na transparência não apenas como prática pessoal, mas como ideologia. Paradoxalmente, a sua retórica incorpora paralelos com uma máxima dos regimes autoritários: quem não tem nada a esconder, quem se portar bem, não é afectado pela repressão. Só que toda a gente pode ter algo a esconder, e portar-se mal muitas vezes não é crime: faz parte da liberdade individual de cada um, e a democracia deve incorporar esta ideia; é legítimo que um governo democrático tenha uma certa latitude de acção, especialmente para defender o país de ameaças graves, o que obviamente não o iliba de escrutínio e de regulação.

A própria delação também tem gradações. No caso Wikileaks, apesar de se ter começado por expôr atrocidades cometidas pelos americanos no Iraque, numa segunda fase publicou-se informação relativa a todo o mundo, desde narco-estados até velhas glórias europeias, o que revestiu toda a operação de um certo equilíbrio, apesar das dificuldades que trouxe à diplomacia internacional; no caso Snowden, temos numa primeira fase a revelação de que a NSA, agência de segurança americana, espiava os próprios cidadãos com a conivência de empresas privadas, facto gravíssimo e sempre negado, mas em seguida Snowden desdobra-se em comentários em relação a actos e políticas de segurança dos EUA em relação a países como a China. Qual afinal a latitude legítima de acção de um "whistleblower"? Será lícito dar armas a estados não democráticos, opacos, em nome da transparência absoluta? É que (ainda) não há um Snowden chinês.