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2014-05-20

Her, de Spike Jonze

O cinema raramente nos mostra um futuro em que os personagens estão sincronizados com a sua época: por vezes recorre-se a viagens no tempo, mecanismo narrativo eficaz para mostrar as diferenças do tempo para onde viajam; outras vezes, mesmo sendo futuro, é uma espécie de futuro hoje, em que os seus habitantes e as suas atitudes são estranhamente decalcados dos nossos dias.


Na maioria dos filmes de ficção científica a pergunta implícita tem sempre a ver com as consequências nefastas da perda de controlo sobre as máquinas; neste caso, retirou-se esse preconceito e pergunta-se:


"Como será o mundo quando os computadores estiverem presentes em em cada vez mais domínios considerados exclusivos do ser humano? Como nos iremos relacionar com eles?"


Estamos habituados a ver os computadores como executantes eficientes de tarefas complexas e repetitivas, com inevitável orquestração humana e pouco ou nenhum sentido crítico; progressivamente, características mais inequivocamente humanas aparecem e continuarão a aparecer nas máquinas, não só pela sofisticação tecnológica mas também porque cada vez percebemos mais sobre o funcionamento do nosso cérebro e, portanto, de como poderíamos modelar características humanas num computador.


O tema central é uma história de amor entre um humano, Theodore, homem algo desiludido com a vida, e uma assistente pessoal, Samantha, que é muito mais do que isso. A relação passa por várias fases: primeiro, as limitações físicas da máquina dificultam o relacionamento, cabendo ao humano apaixonado tentar mostrar como é que o mundo funciona, moldando Samantha ao mundo e aos comportamentos. A máquina eventualmente apercebe-se de que não tem certas limitações humanas, como por exemplo ter conversas com milhares de outras máquinas sem ter que usar a fala. No fundo acaba, como a nossa espécie, por se adaptar aos seus limites. O relacionamento revela-se impossível por uma clássica incompatibilidade: nenhum deles é menos do que o outro, operam é em domínios diferentes. A máquina desinteressa-se porque, retirando o enfoque do lado físico, consegue manter com outras máquinas milhares de relações interessantes ao mesmo tempo. O humano, como consequência dessa percepção e da óbvia falta do lado físico, desinteressa-se também.


O futuro que rodeia esta história tem diversos pormenores que são mais incrementais em relação ao presente, não havendo grandes descontinuidades.


No entretenimento, o personagem principal joga um jogo de computador controlado pelo movimento e pela fala, em que a interface é holográfica e tudo parece passar-se na sua sala. Ao mesmo tempo, encontra personagens que parecem conhecer-lhe os traços de personalidade e desafiam-no a progredir, duma forma até bastante adulta. A experiência desse jogo é depois discutida em conversas sociais.


Na arte, um regresso inesperado ao passado: uma vizinha mostra a Theodore um documentário que está a fazer para a tese de doutoramento. Vê-se um filme quase parado de uma pessoa a dormir, quase uma foto, sem movimento, sem tridimensionalidade nem efeitos especiais.
Num encontro entre um homem e uma mulher que não se conhecem previamente, a certa altura o homem refere coisas privadas da vida dela, presumivelmente tiradas da internet, e isso não é considerado uma invasão de privacidade terrível... Ela diz apenas "Pesquisaste sobre mim? Que querido".


Her é um filme visualmente rico, com uma estética bem pensada e em que se tentou criar uma futurologia incremental, credível e em relativa paz consigo mesmo; isto permite também mover o foco do filme para os personagens, para a história subtilmente tocante e melancólica que Jonze quer contar com simplicidade.

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