“Cada Sopro” é a primeira peça completamente original de um famoso e prolífico encenador australiano, Benedict Andrews. Não conheço o texto em inglês, “Every Breath”, a não ser por excertos, entrevistas ao autor e críticas da cena teatral de Sydney, ao que parece o único sítio onde a peça foi levada a cena.
A história gira à volta de uma família rica, pai escritor, mãe ociosa, filhos gémeos de géneros diferentes; a família, que vive num condomínio fechado, está sob uma ameaça desconhecida, e tem um segurança profissional continuamente a zelar pelo seu bem estar. No aniversário dos gémeos, o segurança é convidado para jantar com a família, e abre-se uma porta para uma orgia freudiana, com a projecção de todos os medos e angústias no segurança, tratando-o como uma figura mística que os pode arrancar da letargia do seu estilo de vida, compartimentado e distante da realidade. No clímax da peça, a ameaça concretiza-se: existe um ataque, o segurança é ferido a tiro e deixa de vez a família, culminando tudo numa catártica sessão de masturbação colectiva, em que cada membro da família evoca o segurança à sua maneira. Neste ponto, existe uma incoerência estranha: na peça original, o segurança é uma figura andrógina, mas neste caso o segurança é claramente uma figura masculina; tendo-se eliminado a androginia original, é estranho que os personagens continuem a referir-se ao segurança como “ele” ou “ela”.
Analisando para além do fogo de artifício sexual, a peça parece pretender apresentar uma visão simultaneamente actual e distópica da decadência dos nossos tempos, com diferenças sociais tão abissais que um trabalho de segurança pode transformar-se numa escravatura, sendo lícito que, para protecção de uma família rica, uma pessoa seja explorada até ao limite da sua dignidade, e que ninguém ache estranho que isso possa fazer parte do seu trabalho e que a estranha relação laboral seja consentida pelo próprio.
Não há dúvida que esta dimensão filosófica existe, assim como uns laivos de surrealismo, mas tal não sobrevive a uma estrutura que está entre o filme pornográfico e o episódio de uma série de zombies. Filme pornográfico porque a tensão que poderia haver é invariavelmente concretizada sexualmente, ficando o espectador com aquela impressão de “ou muito me engana, ou nesta cena toda a gente vai ter sexo com toda a gente”. A parte da ameaça, do suspense, é mais bem conseguida, exactamente por ser mantida mais vaga, concretizando-se principalmente na sonoplastia e na luz, que são excelentes, salvo os discursos finais de cada membro da família, ditos ao microfone mas praticamente imperceptíveis. Presumo que seja uma opção estética, porque a haver problema técnico, sendo esta a última exibição, ele já deveria estar resolvido.
A performance dos actores é posta ao serviço desta missão-choque, e eles cumprem-na com brio, mas, numa outra camada de análise: tal como na narrativa, haverá aqui outra exploração dos limites da dignidade?
No final, saí com a sensação de um assalto algo gratuito ao espectador, em que as subtilezas foram esmagadas em nome do efeito choque, em que a dimensão intelectual foi tratada à mangueirada em nome do efeito estético, e em que pinceladas freudianas se transformaram em pintura a rolo...
Sábado, 3 de Agosto - última exibição
Teatro da Politécnica
Ficha técnica:
CADA SOPRO de Benedict Andrews
Tradução Jorge Silva Melo
Com Ana Bustorff, Cleia Almeida, João Vaz, Pedro Gabriel Marques e Sisley Dias
Desenho de luz Daniel Worm d'Assumpção
Espaço sonoro Daniel Romero
Espaço Cénico John Romão
Assistência de produção Mónica Talina e Sabine Delgado
Fotografias Susana Paiva
Encenação John Romão e Paulo Castro
uma co-produção Colectivo 84 & StoneCastro
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