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2013-11-09

As ideologias de Žižek em Lisboa



O filme “Pervert’s Guide to Ideology”, de Sophie Fiennes, dá continuidade ao seu trabalho com o filósofo esloveno Slavoj Žižek, que é a definição de intelectual multitarefa com queda para estrela pop. O primeiro filme, “Pervert’s Guide to Cinema”, era uma colagem de cenas de filmes conhecidos, com Žižek a analisá-las, na maioria das vezes de uma perspectiva psicanalítica. Além de intelectual inteligente, Žižek tem um distanciamento saudável em relação a si próprio e ao seu papel, o que o torna também uma espécie de “humorista sério”, e é imensamente divertido vê-lo a discorrer sobre uma panóplia de filmes, arranjando ligações improváveis e pondo o seu vasto conhecimento académico ao serviço da cultura mais popular, papel fulcral nestes tempos de divórcios culturais. O filme actual é mais ambicioso, e pretende ser mais geral, porque embora continue a usar o mesmo tipo de linguagem visual, com o pormenor de também usar publicidade e acontecimentos noticiosos, reflecte não sobre o cinema mas sobre a ideologia, quer a sua definição, quer a sua utilidade e consequências.
i·de·o·lo·gi·a
1. Ciência da formação das ideias.
2. Tratado sobre as faculdades intelectuais.
3. Conjunto de ideias, convicções e princípios filosóficos, sociais, políticos que caracterizam o pensamento de um indivíduo, grupo, movimento, época, sociedade (ex.: ideologia política).
"ideologia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha]
Em Portugal estamos habituados a ligar ideologia com fascismo, nazismo ou comunismo, com esta última a manter-se bastante mais a salvo da carga negativa com que em geral se olha para estes regimes. Como é óbvio, e mesmo sendo marxista e até de alguma maneira proclamadamente comunista, Žižek sabe como é viver sobre uma ditadura totalitária, neste caso a de Tito, da ex-Jugoslávia, que construiu o comunismo balcã paralelamente à linha oficial da URSS. Sobre esse regime, Žižek, neste filme, revela uma muito interessante curiosidade que acaba por ser um elogio amargo à sofisticação da sua censura, especialmente se compararmos com a usual desqualificação intelectual dos censores que operavam em Portugal durante o regime de Salazar. Com o filme “Música no Coração” como fundo, num momento em que, com medo de sucumbir ao amor pelo Barão Von Trapp, pai das crianças das quais é perceptora, a freira Maria regressa ao convento e aconselha-se com a Madre Superiora. Esta, pretendendo ajudá-la a decidir, canta uma música com o refrão “Climb every mountain”, lida por Žižek como uma celebração da liberdade individual; o facto é que esses 3 minutos de filme foram cortados na exibição do filme na ex-Jugoslávia. Este segmento ilustra também a dicotomia entre a esquerda que nunca viveu numa ditadura comunista, a portuguesa, com a que já viveu, neste caso Žižek; o elogio à liberdade individual e alguma desconfiança do estado como máquina burocrática estão completamente integrados no seu discurso - em Portugal, estes conceitos são muitas vezes ligados à direita, o primeiro porque não faz a devida vénia ao colectivo, o segundo porque supostamente nos pode levar à desvalorização e consequente destruição do estado social. Versando a democracia capitalista, Žižek, aqui classicamente marxista, defende que há uma espécie de ordem autoritária que lhe está subjacente, que assenta na maioria das vezes na realização pessoal pelo consumo, ou melhor, na imposição subreptícia de objectivos de vida, alguns difusos e alguns atingíveis, mas que só poderão ser tocados consumindo produtos. Existem sobre este tema dois excelentes segmentos, o da Coca Cola, alvo usual, e o do ovo Kinder - a Coca Cola é vendida como a bebida definitiva, mas no entanto não mata verdadeiramente a sede e, quando está menos do que gelada, adquire um sabor horrível: um exempo do mecanismo de repetição de consumo incorporado no próprio produto. No caso do ovo Kinder, a empresa vende um brinquedo que só se pode ter comendo o ovo, ou seja, um objectivo que só se pode alcançar consumindo o meio, o chocolate, que é o negócio central da empresa em questão. Um dos pontos fortes do filme é o primeiro segmento, que usa a obra “They Live”, de John Carpenter, para reflectir sobre ideologia. O personagem principal encontra uma caixa com óculos escuros e, ao pô-los, consegue ver a “verdade” do mundo que o rodeia, segundo a tese do filme consegue ver a ideologia dominante: o mundo aparece-lhe a preto e branco, nas mensagens publicitárias aparecem palavras como “Obedece” e “Casa e reproduz-te”, o dinheiro tem escrito “Eu sou o teu deus”, etc. Mais tarde, o herói do filme luta com um conhecido, tentando obrigá-lo a por os óculos, a ver a “verdade”, encontrando enorme resistência, preferindo o outro, isto também segundo a tese do filme, manter-se na ignorância. A tese de Žižek é um pouco diferente, e defende que a ideologia não é bem a tal “verdade” escondida, mas sim os próprios óculos que pomos, consciente ou inconscientemente, para ver o mundo; para ver a verdade teríamos que, simbolicamente, tirar os óculos. Expandindo esta ideia, numa ditadura, os óculos são-nos fornecidos mais ou menos explicitamente, desde o nascimento, e há uma arquitectura centralizada, cuidadosamente pensada pelas elites para os legitimar, recorrendo muitas vezes a instrumentos como a violência e a coacção. Parece-me típico que Žižek, tendo vivido sob uma ditadura comunista e vendo o capitalismo também como uma espécie de ditadura simbólica, apele a que se tire os óculos para ver a verdade. E se os óculos forem o nosso cérebro e apenas representem a nossa visão do mundo, como seres humanos imperfeitos e únicos? Nas democracias liberais, as pessoas têm óculos, mas têm muito mais instrumentos para os escolher, ou mais precisamente, para os reconhecer: há uma parte da nossa visão do mundo que nasce connosco, uma parte que vem da família, uma parte que vem da sociedade e, por fim, uma que é exclusivamente do livre arbítrio. Assim, somos livres não por ter uma pretensa visão neutra sobre o mundo, mas por tentar conhecer o nosso edifício ideológico, reconhecer as suas várias partes, as motivações, identificar os preconceitos e as sensações, e assim podermo-nos concentrar no livre arbítrio. É necessário também ter a coragem de perceber o que temos poder para mudar, o que devemos aceitar, aquilo por que devemos lutar e do que é que nunca abdicaríamos. É desta complexidade, das muitas “ideologias pessoais” e dos seus cruzamentos, que vive a democracia liberal, não de tentar transformar cada ser humano num observador neutro e distante. O filme tem muitas outras caracterizações interessantes de ideologia, discutindo extensamente a religião, a arte e alguns eventos recentes como os motins de Londres em 2011 ou o atentado na Noruega de Anders Breivik, e é sempre coerente e corajoso no modo como não torna tabu nenhuma das visões sobre estes assuntos, mesmo os extremismos. É interessante para quem goste de pensar e discutir ideias, e tem uma particularidade, que nos tempos que correm em Portugal é refrescante: tem muito discurso associado à esquerda, crítico do capitalismo e do sistema, mas evita focar apenas o ângulo económico/financeiro; pretende ser mais geral do que isso, mais filosófico, e isso também é bem vindo nos tempos que correm.

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